Claudia Andujar: a sobrevivente do Holocausto que há quase 50 anos luta pelos direitos dos ianomâmis

Aos 40 anos, em 1971, a fotógrafa Claudia Andujar teve um encontro que mudou o rumo de sua vida

Nascida na Suíça, Claudia já vivia no Brasil havia 16 anos, tendo construído uma carreira de sucesso no fotojornalismo. Mas naquele início da década de 1970, sua profissão tomou outra direção quando ela fotografou os índios ianomâmi de Roraima para a revista Realidade, que fazia um especial sobre a Amazônia. Na época, o povo ianomâmi era relativamente isolado.

A viagem não foi o primeiro contato dela com as populações nativas do Brasil. Amiga de Darcy Ribeiro, ela visitou por orientação dele a Ilha do Bananal em 1958, quando fotografou o povo Karajá – imagens que foram publicadas pela revista Life. Claudia também visitou os Bororo e os Xikrin Kayapó.

Mas foi o encontro com os ianomâmis que a marcou definitivamente. A fotógrafa se envolveu com a comunidade para o resto da vida, voltando inúmeras vezes para a região e mais tarde passando a militar em defesa dos índios, produzindo um acervo que agora é tema de exposição em São Paulo.

Nos anos 1970, ela decidiu abandonar São Paulo e foi viver na Amazônia – morando entre os Estados de Roraima e Amazonas. Uma bolsa da Fundação Guggenheim permitiu que ela se dedicasse integralmente ao trabalho com índios entre 1971 e 1974, e outra, da Fapesp, que ela continuasse o projeto até 1976.

Entre 1971 e 1977, fez uma série de fotografias a partir de sua convivência com os ianomâmis na região do Catrimani. Acompanhava o cotidiano na floresta e, na maloca (habitação coletiva), retratava as pessoas em suas atividades diárias e durante os rituais xamânicos – e foi passando cada vez mais tempo na floresta.

Andujar fez amizade com o missionário Carlo Zacquini, que vivia há muito tempo entre os ianomâmis, e passou a acompanhar viagens, festas e expedições de caça.

“É claro que cortar um animal é algo sangrento, mas, não sei, acho que já me acostumei com isso, não me choca mais e nem acho estranho. É o jeito que as coisas são”, descreveu ela, na época, em áudio gravado na mata. “Para falar a verdade, estou há tanto tempo com os índios que não acho mais nada estranho. Sempre olho e tento entender. As coisas são do jeito que são.”

Sobrevivente

A suíça Claudia cresceu na região da Transilvânia, entre a Romênia e a Hungria, com sua família paterna, de origem judaica.

Durante a Segunda Guerra Mundial, essa parte da família foi assassinada nos campos de concentração de Auschwitz e Dachau, e Claudia conseguiu fugir com a mãe de volta para a Suíça em 1944.

Depois emigrou para os Estados Unidos, onde foi morar com um tio. Lá, trabalhou como guia na sede da ONU e começou a se interessar por arte. Casou-se pela primeira vez, com Julio Andujar, refugiado da Guerra Civil Espanhola, mas se separou meses depois, quando ele foi enviado para a Guerra da Coreia.

A carreira de fotógrafa começou por volta de 1955, quando veio ao Brasil visitar a mãe. Sem falar português, ela decidiu ficar. Ao longo da carreira, produziu um acervo de mais de 40 mil imagens.

Uma seleção de cerca de 300 obras desse acervo será exibida no IMS (Instituto Moreira Salles) da avenida Paulista, em São Paulo, a partir de 15 de dezembro. A exposição terá também livros, documentos e uma instalação que fazem um panorama sobre a artista, que hoje tem 87 anos. A exposição terá entrada gratuita e funcionará de terça a domingo das 10h às 20h e, nas quintas, até as 22h.

Segundo Thyago Nogueira, curador da exposição, os anos de dedicação de Claudia ao seu trabalho fizeram com que seu interesse jornalístico se transformasse em “interpretação radicalmente original da cultura (ianomâmi)”.

Para Nogueira, um dos conjuntos de fotografias mais impactantes feito por Claudia nos anos 1970 é o registro das festas reahu – cerimônias complexas que misturam rituais funerários e ritos que reforçam a aliança intercomunitária, marcado pela fartura de comida.

Antes de registrar os rituais, ela fez experimentos fotográficos em São Paulo, testando lamparinas, flashes, e filmes infravermelhos, que depois usou na mata.

Sua obra também é repleta de retratos das centenas de pessoas que conheceu – crianças, jovens, adultos –, feitos com luz natural e que trazem um ar de intimidade.

A fotógrafa também propôs aos ianomâmis que eles mesmos representassem sua cultura e sua universo por meio do desenho de mitos e cenas do cotidiano. Em 1974, com a ajuda de Zacquini, levou à mata papéis e canetas hidrográficas. Cerca de 30 desenhos originais resultantes desse projeto estarão na mostra no IMS.

Devastação

Em quase uma década vivendo entre os ianomâmis, Claudia presenciou não apenas alegrias das festas e a placidez do cotidiano mas também cenas de conflito e devastação gerados pelo contato dos brancos com o povo indígena.

Ela foi testemunha de um rastro de doenças, violências e poluição resultantes dos conflitos de terras gerados pelo garimpo e pelos planos de desenvolvimento da Amazônia do governo militar. Comunidades inígenas inteiras foram aniquiladas, levando a fotógrafa iniciar uma batalha para ajudar o povo em sua luta por sobrevivência.

Em plena ditadura militar, ela acabou enquadrada, em 1978, pela Lei de Segurança Nacional. Foi expulsa do território indígenas pela Funai e voltou a São Paulo, onde começou a organizar um grupo em defesa da criação de uma reserva ianomâmi – a Comissão pela Criação do Parque Yanomami (hoje Comissão Pró-Yanomami).

A demarcação da reserva só foi acontecer em 1992, após a redemocratização do país e às vésperas da Rio-92, a conferência-geral da ONU sobre o clima realizada naquele ano no Brasil.

Ao assumir a coordenação da campanha pela demarcação da terra indígena, foi diminuindo seu trabalho fotográfico e dando força a seu ativismo político. Mobilizou ONGs nacionais e estrangeiras, participou de programas de saúde e educação na terra indígena, levantou dinheiro para a causa e viajou pelo mundo para denunciar o genocídio de índios.

Suas fotos se tornaram forte instrumento de luta política. Um de seus trabalhos mais conhecidos é uma série de fotos numeradas em várias regiões de cadastros de saúde e vacinação.

“Criamos uma nova identidade para eles, sem dúvida, um sistema alheio a sua cultura”, disse a fotógrafa sobre a exposição com seu acervo. “São as circunstâncias desse trabalho que pretendo mostrar por meio das imagens feitas na época. Não se trata de justificar a marca colocada em seu peito, mas de explicitar que ela se refere a um terreno sensível, ambíguo, que pode suscitar constrangimento e dor.”

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